WAR
A pedido de algumas famílias, aqui fica o texto publicado no DNa sobre a Guerra:
"NA PAZ E NA GUERRA
Nesta Páscoa irei em direcção às macieiras. Hão-de estar floridas. Se tudo correr bem. O ar húmido há-de estar cheio do cheiro das ervas e dos pinhais vizinhos. Mas, se o tempo aquecer, vou ouvir o barulho das asas minúsculas dos insectos. As mil batidas de cada asa, repetidas vezes sem conta. E vou sentir o silêncio. Nesse silêncio hei-de pensar na filha que estará a brincar, contente, com os primos. Todos armados em selvagens a correr sem perigo pelo meio das árvores. E não vou ter medo por nenhum de nós.
Algures no mundo há-de estar outro homem como eu. Alguém da minha idade. Alguém que ainda não sabe como é que o tempo passou tão depressa que a pessoa que ele era se multiplicou em família. Vai estar sentado no meio dos escombros, o pó levantado como um bicho estranho àquela terra. Vai tentar pensar nas suas árvores favoritas, que talvez sejam tamareiras, ou palmeiras baixas de uma espécie autóctone. E não se vai lembrar da sua forma. Porque o mundo inteiro se sumiu na queda da casa que era a dele. Debaixo dos escombros há-de ter um rosto querido, irreconhecível para todos menos para ele que, mal as lajes se levantem e ele lhe toque na pele, há-de dizer o seu nome, enquanto o coração se dissolve pelo peito fora e daí para o chão. Esse homem e eu somos o mesmo. Só o silêncio que nos envolve será diferente.
Dentro de um tanque está um soldado. Está a suar. Menos do que no início, quando as temperaturas do ar o faziam pensar que enlouqueceria dentro do fato pesado. Assassinado pelo colete à prova de balas e pelo fato protector contra os ataques químicos. Tem, no bolso, um gameboy. Comprou-o mais barato na loja da base onde permaneceu uns dias antes de aterrar no deserto. Tira o capacete e passa a mão na testa onde se encontra uma pequena cicatriz. Não tem mais de dois meses, o lanho. Fê-lo na carreira de tiro, enquanto rastejava através de um obstáculo. Dói a ferida de brincar. Ao seu lado a arma, moderna.
Do meio do mato, salta um homem, leva uma vasilha de plástico amarrada ao corpo. Rasteja há dois dias, depois de ter fugido do exército onde se alistou. Não acredita em nada, o homem. Vagamente em Deus porque sabe que aos não-crentes, mais do que a morte, resta o vaguear sem destino. Como se a vida inteira se transformasse num deserto igual àquele por onde agora se arrasta. Sai detrás dos arbustos, onde adormeceu um instante. Sai para a luz, levantando a arma em direcção ao céu para se proteger. Da cor e do barulho que se levantou, inesperado, no meio da terra seca. Na sua frente, os gritos em língua estrangeira, as armas apontadas, u som tão intenso que o ensurdece. Sente o impacto da bala que lhe entra no uniforme sujo. E mais uma ou duas das que se seguem. Depois, mais nada. Só o medo do soldado que caminhava dentro de um tanque e que agora debruça a sua sombra sobre o seu corpo. E, por um momento, dois homens partilham o mesmo espaço de morte.
Num mosteiro, um frade fecha a tampa do seu computador portátil e olha para fora. O dia aqueceu. As plantas precisam de água. Desce as escadas de pedra fresca em direcção ao pátio de pedra e daí até à horta. Abre a torneira que faz um ruído de réptil incomodado. E a água corre e inunda a terra vermelha. Foge por entre os regos abertos no solo como se fosse perseguida. Mas só o fantasma do seu reflexo corre atrás da água enquanto esta abraça os pés dos feijoeiros e as folhas ásperas de tomateiros e aboboreiras. O frade senta-se sobre uma árvore decepada e retira do bolso um caderno e um lápis. E, no meio da penúltima folha, aperta a letra, enquanto anota um poema de louvor. Levanta os olhos para a forma de uma cegonha que chegou de longe e voa em direcção ao ninho no cimo de um telhado. E água corre, corre.
Na parada um menino vestido de tecido áspero e fora de moda desfila com uma arma pequenina mas que podia matar se quisesse. Há-de ter uns onze anos. Talvez doze. Treina obstinadamente os mesmos passos e movimentos de arma. Em cima, em baixo, à esquerda e à direita, ao ombro. No feriado, o pai vai orgulhar-se dele, quando o vir entre a multidão. Talvez possam trocar umas palavras, ele e o pai. A madrasta por perto, a cheirar a perfume. Quer ser um homenzinho igual ao criador. Para que ele nunca mais o mande embora. Quando for grande, talvez possa mostrar o resto do que aprendeu. As técnicas eliminar pessoas, a crueldade que ainda está a aprender nos jogos com os outros, a ausência de afecto que a família lhe ensinou. Se tudo correr bem, este menino há-de ser uma máquina de matar de que o pai se envaidecerá.
Numa casa tosca está um menino vestido de tecido macio, calções com grandes buracos. Está sentado no chão, no meio de outros oitenta, iguais a ele. Repetem o que a professora diz. É a escola de cor para quem não tem livros e muito menos cadernos. Mas, pode escrever no quadro, quando chegar a sua a vez. A professora tem uma vara flexível para lhes dar nas orelhas, sempre que fazem graças em vez de repetir o que ela desespera de ensinar. Ali, não há tempo a perder. Aprender ou sair. Quando o dia aquece e já não se suporta estar dentro da casa, a professora manda tudo embora. Levantam-se, entorpecidos, antes de se lançarem em corridas pelo chão de terra batida. Ele é um dos primeiros a sair. Está com pressa. Vai mostrar o telemóvel que fez de uma lata de refrigerante trocada por um novelo de barbante (encontrado, a dar sopa! no jipe aberto de uns turistas perdidos). Sai a correr e entra na zona em que nem todas as minas foram encontradas.
Um barulho grande há-de chamar a atenção da professora que sairá a correr pedindo aos céus que não seja o que ela pensa.
No mosteiro, o frade há-de levar as mãos aos olhos para se proteger da luz que o ofusca ao sair do meio da plantação de feijão.
O soldado há-de sentar-se, a suar, no consultório do médico militar, com os pensamentos em escombros.
O aprendiz de guerreiro há-de passar junto de uma macieira e arrancar-lhe as delicadas flores para as ver perderem-se no ar.
O desertor há-de pensar, uma última vez, na filha que imagina a brincar em segurança na terra que não mais avistará.
E eu, nesta Páscoa, hei-de sentar-me à sombra da minha casa segura e receber as penas deles todos. Enquanto a água continuará a correr por perto, perseguida pelo reflexo do mundo.", (Abril de 2003)
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